Faz dois anos
Desde a vez derradeira
que te vi
E o amor se esvaiu do
meu coração
Empoleirada, ranzinza,
de cara fechada, na porta do teu quarto
Com a toalha enrolada ao
teu corpo: campo alvo de algodão
Paixão e clemência nos
teus olhos de lágrima
Teu cheiro em suas
roupas íntimas
O sabor agridoce das
suas calúnias sobre mim
Me olhava torto, como se
eu fosse o culpado da tua desgraça
Surtei quando te vi
partindo, enlouqueci e gritei contra o travesseiro
Você sempre foi muito
injusta
Espero que saiba
Coitada, já deve até ter
perecido às intempéries do tempo
Eu nem lembro o que eu
almocei nesse dia
Nem se falei besteira
Mas da tua boca ouvi
calado: malcriações, injúrias e impropérios.
Nada sinto quando lembro
Da tua expressão
endurecida
Da tua cara de
reprovação quando eu me cobrava demais
Do teu corpo enxuto
atrelado ao meu, realizando a mais verdadeira e sincera das danças
Dos teus lábios nos meus
peitos (desculpa a vulgaridade)
Hoje nem choro mais
Você também não
Nem
tenho mais forças para te homenagear.
Pela distância que
tomei, peço perdão
Mas não me arrependo
Pois eu cresci um tanto,
e amadureci calado
Devo ter deixado um ou
dois livros na sua estante
A essa altura:
empoeirados/ consumidos pelo esquecimento
Refém do abandono
Tirei da avenida meu
carro alegórico
Recolhi meu folião
Taquei fogo nas minhas
fantasias de carnaval
Teu silêncio me fazia mal, hoje não mais
Deixei escorrerem pelo
ralo as minhas reminiscências
Cancelei o desfile da
minha escola de samba
Da qual tu era dona/
rainha de bateria/ musa/ porta-bandeira
Hoje desfilo pelo bloco
da solidão
Mas me encontro mais
feliz também, porque eu danço com ela
Porem, nada me fez mais
feliz como no dia em que a porta se abriu sozinha
Com o vento vespertino
dominical, e por ela ninguém entrou
Fechei a porta e por
dois ou três anos não ouvi mais batidas tuas
Esgotaram-se todas as
minhas reservas de amor, aposto que as suas também
Pois dois ou três verões
ralos passaram ligeiros - vigorosos - rudimentares - póstumos - regulamentares - apressados
E nem o telefone ouvi
tocar
O tempo é mesmo cruel,
impiedoso
Que pecado, que
maravilha.
Pela janela do teu
quarto eu via nascer a bonanza
A falsa calmaria do
devir
E ainda
lembro
------------/ da vez derradeira que te vi
Preocupada
Insegura
Dissimulada
Cheia de si: o mundo já
não lhe parecia tão hostil
Pura falácia
Te surpreendi assustada
Iludida
Deslumbrada
Vulnerável
Exposta
Incomodada
Até chorou nos meus
braços
Fingimento.
De dois anos pra cá
Eu nada soube de ti
E Deus me livre, nem
quero saber
Até os dias recentes, eu
nada escrevi
Meus versos foram embora
contigo
Naquela fatídica noite
de fevereiro
E você nem me pediu
emprestado
Fiquei abismado com
tamanha insolência
Mas eles voltaram
Arrependidos, mudados,
transfigurados e resolutos
Como o filho pródigo que
ao lar retorna (era mesmo verdade)
Sim, eles voltaram
Dessa vez, aparados pelas arestas e pelas mãos doces do meu púbere, puritano,
imaculado e vigente amorzinho
Com o qual eu, por 18
anos sonhei, antes de conhecê-lo
Eu senti a falta dela,
por todo esse tempo
E eu nem sabia que ela
existia
Ou que seus olhos
cintilariam como constelações adjacentes e inebriantes quando ela esboçasse
aquela minha risada favorita
Ou que eu me sentiria
privilegiado ao ser ignorado pelos corredores vazios
Ou que me encheria de
alegria o peito só por estar na sua presença
Ou que os nossos passos
curtos seriam os maiores motivos
Pr’eu demorar de chegar
em casa
Mas isso é assunto para
outros versos.
Todo esse tempo sozinho
fui
E assim estive mesmo
quando os braços esquecidos de outrora
Envolviam meu corpo
casto, escasso
Me deu clareza de pensamento
Recolhi os cacos e
engoli o choro
Mas minha cabeça ainda é
frágil
Meu coração é quem acaba
falando
E há muito tempo eu
perdi essa guerra
De cabeça vs. coração
Como naquela música que
fala
Nem me lembro mais da
cor de seus cabelos
Ou da forma como me
manipulava com teu cheiro forte de ferrugem
Também nem faço questão
Depois, vez ou outra, te
encontrei
Anunciaram eufóricos a
tua chegada
Como se anunciassem a
chegada da primavera
Vê se pode
Não me parecia mais a
mesma
Você se erguia duvidosa,
defensiva
E teus passos soavam
como canção fúnebre
Como se eu fosse o
culpado da tua desgraça
Senti imenso desprazer e
meu coração permaneceu incólume
Nem ouvia mais os mesmos
discos
Mas teu riso era ainda o
mesmo: frouxo e familiar
Porem, menos encantador.
Fim dos verões, findo
amor
Hoje estou encardido,
mudo, azedo, desinibido, cínico
Mas, apesar de tudo,
aliviado
Pois já não te tenho
mais ao meu lado.